MEMÓRIAS DO COMBATENTE DAS FPLM


“Esta é a voz daquele que grita no deserto: preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas estradas. Todo vale será aterrado, todas as montanhas e colinas serão aplanadas; as estradas curvas ficarão rectas e os caminhos esburacados serão nivelados. E todo homem verá a salvação de Deus”[1].

Assim pregava um veterano padre, da aldeia, durante o período do advento do natal. Para mim, soaram mais alto em 1960, com o massacre de Mueda, quando meus irmãos “pecadores” como eu, rogavam a devolução da “terra prometida” ao dito homem branco. Pedido esse que mereceu a mais singela resposta, simples, clara e distinta: massacre.

Escreveu São Lucas: “haverá sinais no sol, na lua, nas estrelas, e na terra. As nações cairão em desespero … os homens desfalecerão de medo e ansiedade, pelo que vai acontecer ao universo …”[2]. Palavras quentes e frias em simultâneo, mas eu sempre esperava esse dia, com tamanha ansiedade, não para ver a desgraça dos homens, mas sim para ter a minha terra prometida de volta, assim como meus irmãos pretos também procuravam suas terras prometidas.

Os dedos do mesmo evangelista escreveram: “ Estejam bem atentos …. Para que possam escapar a todas coisas que vão acontecer, para que possam apresentar-se firmes diante do filho homem[3]. Sim o filho homem chegou, não chegou por acaso não, chegou na hora certa e no lugar certo. Por suas mãos fundamos a nossa religião intitulada: Forças Populares de Libertação de Moçambique (FPLM), com objectivo único: trazer a terra prometida aos legítimos donos. Dizia eu ignorando a famosa frase do Hitler: “ quanto maior for a mentira, maior é a chance de ela ser acreditava”.

Eu e meus “coparcos” irmãos da pátria amada fomos os discípulos fiéis jamais vistos. Libertamos terras e homens pela pregação de um Moçambique mais justo para todos. Causa que em curto espaço de tempo foi abraçado por numerosos moçambicanos, enraivados pela angústia, dor de tamanha chicotadas que o homem branco dava aos seus cavalinhos na sua cansada à riqueza alheia.

Num piscar do olho, surgiram terras libertadas, onde já se podia dançar à volta da fogueira, saborear o meu chiguinha de cacana, ouvir o grito das crianças fartas de medumbe e coconas tomando wulapwa, wucani pesticando com txua, no verão do sol escaldante. As mamanas voltaram a ser as desejadas mutinas Horera, embalando no calo as princesas e príncipes das terras das musas de macuaela e tufo. Nos olhos dos jovens lia-se o romance jamais esquecido: Julieta e Romeu, sim, era isso mesmo. Os cocuanas não esqueciam de agradecerem as suas venerações aos nossos mártires e profetas perecidos, na resistência à dominação colonial, destacar: Ngungunhane, Matola, Zichacha, Matinzane e outros.

Nada nos faltava para continuar a sorrir cada vez mais, cada dia e em cada passo que dávamos com destino da conquista da nossa plena liberdade. Tudo era mais do que esperança, tudo era verde, era sol, lua, mar. Tudo puro como inocência de uma criança e entusiasmo de noiva admirando o anel de casamento.

Um dia alguém apontou dedo no ar e proclamou a salvação. Salvação? Sim, o objectivo foi alcançado. É vez de fortificar o que já tinhamos criado e cuidar das “flores que nunca murcham”. Alfabetizar, plantar, colher, construir e reabilitar o que a força das armas destruiu era a nossa aposta mais que certa.

Mas o lobo vestido a cordeiro não tardou de chegar. Aquele que agita e fica de trás enquanto vocês lutam e morrem. Cara torta e cabeça bem recheada de liberalismo e do capitalismo, onde a moral é encher a pança e encurvar mais a grande barriga, já há muito feito saco furado. A democracia veio. Certo cada um por sim e para todos nem Deus não existe.

E eu? Cessei funções de comandante de companhia para o esquecimento …. Morri, mas apenas não ” morri com meu próprio nome”[4], por que eles se lembram da minha tolice por acreditar que há um bem para todos. Pois bem, não conhecia a lei do mais forte. A colonização foi um mal, mas o mal mais forte o derrubou e tomou o poder, o capitalismo.

O sangue dos meus “coparcos”, foi esquecido, melhor é usado para se vangloriar e continuar a enganar o povo. O sacrifício imensurável tornou-se tabu e desculpa para qualquer que quiser arrancar do povo alguma ou mesmo para entusiasmar. Eu me pergunto: quando é que a conquista da independência nacional deixará objecto dos discursos políticos? Será até data hoje não existe outros motivos para comemorar e tornar objecto de pedido de voto além deste? Sim não existe, por que se existisse já estaria em todas midias, mas como nãos existe o velho truque ainda continua a ter efeito. 

Não perdi tudo, ganhei algo. Troquei a escravidão estrangeira pela a nacional, a Frelimo pela frelimocracia, as casas de palha sem janelas pela casa de grande envergadura, construída pelos homens fortes e intelectuais, aliais não diria casa, mas sim mação, sem pagamento de imposto. Sim essa é minha casa de ouro: a ponte. Tenho comida à fartura, que vem embalada nas caixas, denominadas contentores do lixo, sobrada dos cachorros de ponta de ouro. Algo de ler não me falta, todos jornais diários, revistas que reportam a luxúria do mundo e suas vaidades, cartas de pedido de empregos, arquivadas muito antes do nascimento do Sócrates e que os seus donos ainda esperam uma resposta de emprego. Tenho tanto privilégio, até de acesso aos manifestos eleitorais que são jogados fora na troca dos mobiliários dos tais ditos gabinetes.

Alguns camaradas de arma que não tivera o privilégio como o meu, de ter uma boa casa, ouço dizer que marcham ao som dos mais variados batuques, nas grandes avenidas da cidade com panos enormes pintados a tinta dourada procurando seu reconhecimento.

Certo, eles sempre são acolhidos com mesmo discurso: nós faremos mais. Comeremos mais, se saciarmos vos daremos as sobras, por que não há nada que possa comprar os membros amputados pelas minas, que paguem o suor e o sangue que banhou esta terra na conquista da independência, que pague vossa tolice de estar na dianteira da luta para nós vos colonizar de novo e termos tamanha riqueza e vender o pais a outros colonizadores maiores que  nós e os primeiro. Não não somos ambiciosos nem vendedores da pátria referidos pelo Machel. Queremos vos deixar bem claro: nunca sonhem com a justiça platónica, no seu Estado Ideal. Aqui vocês devem trabalhar e nós consumirmos. Caros compatriotas “idem em paz”, nós faremos muito mais do já viram e nunca sonhe com a teoria Rawsiana da distribuição equitativa de oportunidades.[5] Amem.

 Não escrevo para que goste, mas para que reflictas.


J. A. Macuácua
Facebook: black J A Mac
 









[1] Lucas. 3: 4-6
[2] Idem. 21: 25-26
[3] Idem. 21: 36
[4] Mia Couto
[5] Jacquiline RUSS, Pensamento Ético Contemporâneo. São Paulo, Paulus, 1999.

No comments:

Post a Comment